Querido Diário
Eu nem deveria começar desse jeito, pois diário é coisa de
menina com lacinho de fita amarrado nos cabelos, munida de um estojinho com
várias canetas coloridas e uma borracha com cheirinho de frutas. É mais ou
menos assim a imagem que se estabeleceu no inconsciente coletivo, fruto de uma
herança patriarcal dispensável. Contudo, se eu não escrevesse assim não seria
eu, afinal, o que é coisa de homem e coisa de mulher nesse mundo de metamorfose
onde os papéis sociais e as identidades estão sendo questionados?
Vivemos nas incertezas das relações humanas, já não nos
contentamos com isto ou aquilo. Mas voltando as vacas magras, até porque eu não
quero entrar na discussão de gênero, pois daria muito pano para a manga. A
lembrança do tão cobiçado objeto é cada vez mais presente nos tempos atuais com
o surgimento dos blogs. Essa ferramenta tornou-se uma espécie de diário
virtual. Mas agora, ao invés de esconder os segredos, tudo é revelado,
compartilhado com milhares de pessoas na tela de um computador! A intimidade do
indivíduo exposta à coletividade de forma muito natural. Existem também aqueles
blogs mais formais, usados de maneira profissional, como por exemplo, os blogs
de notícias jornalísticas.
O diário sempre foi alvo da cobiça masculina, e roubar um
diário de uma menina era um delito delicioso! Nos anos 80 (e lá vem a sessão
nostalgia) era muito comum as meninas ganharem um diário que ia sendo
incrementado com fotos de alguma paixão platônica ou dos astros da TV, cinema e
da música. E não podiam faltar os papéis de bombons, coraçõezinhos, poesias,
declarações de amor ditas em silêncio, tudo devidamente protegido por um
cadeado e uma chave. Valia também registrar nas páginas secretas os momentos
marcantes do tipo: a primeira paixonite aguda, o primeiro beijo, as
transformações do corpo, as brigas com amigas, familiares e pretendentes.
Minha irmã tinha um diário e colocava quase tudo que foi
citado anteriormente, e ainda inventava alguns elementos hieróglifos (que só ela
sabia interpretar) para ninguém conseguir ler, realmente ela era diabólica
nesse aspecto. Apesar disso, virava um anjo diante das fotos autocolantes dos
Menudos, e quer algo mais anos 80 do que a febre, a histeria feminina por esse
grupo musical?
Os homens também escreveram em diários, e eu não estou
falando nenhuma mentira e nem enlouqueci de vez. Refiro-me aos grandes
navegadores com os seus diários de bordo, anotando tudo o que de fato ocorria em
suas viagens. Entretanto, em se tratando de diários sentimentais, tudo muda de
figura. Qual o homem colocaria suas emoções, seus sentimentos em um diário? E
pior, quem assumiria tal ato? Eu nunca escrevi em diário e sim em agendas,
nunca pensei fazer de outra forma. Inconscientemente na minha cabeça esse
objeto já pertencia ao mundo das mulheres. Seria como a história da cor rosa e
da cor azul fixados no subconsciente coletivo. Alguém em algum momento disse
que a cor rosa era para as meninas e a cor azul para os meninos, e saiu
propagando essa maldita ideia sem levar em conta os gostos pessoais de cada pessoa. O bebê é do sexo feminino? Vamos pintar o
quarto de rosa e comprar o enxoval da mesma cor. E se for ao contrário? Pinta-se
de azul e segue o mesmo padrão para as roupinhas. Nunca mergulhei meus
sentimentos em diários, mas sempre tive um interesse em penetrar nesse universo
tipicamente cor de rosa. Afinal, que mistério existe dentro desse objeto? Que confissões
as mulheres lançam naquelas tão desejadas páginas?
No imaginário masculino, a presença do “guardião das mais
profundas intimidades do sexo oposto” despertava muita curiosidade e um desejo quase
incontrolável de desvendá-lo. Qual o garoto que nunca pensou em roubar um
diário? E existem aqueles que até conseguiram tal façanha, mas provavelmente
arcaram com a fúria assassina das donas do objeto! Quanto a mim, não posso
dizer se pratiquei esse ato, pois certas coisas se mantém enterradas na memória.
Vire e mexe as novelas trazem de volta
os diários pessoais, e sempre com a imagem de uma personagem romântica ou
passional. Foi assim com a tal Helena da novela Por Amor (1997) do escritor
Manoel Carlos (aquele bairrista que acha o Leblon o supra-sumo do bom gosto, a fina
flor dos bairros residenciais).
Vivida por Regina Duarte, a personagem
escrevia em um diário os acontecimentos de sua vida, dramas e decepções estavam
ali naquele caderninho, inclusive o grande segredo, a confissão de uma “transgressão”
cometida no passado, e só revelada no final do folhetim. A imagem de uma mulher madura escrevendo em
diário em plena era digital é no mínimo “pitoresca”. E aqui pra nós, quem em sã consciência deixa
escrito algo que o compromete? Seria
mais fácil não deixar pistas, não escrever nada, ficando no silêncio, porém,
isso é novela e tudo gira na base do ficcional, do surreal, do faz de conta. É
a camuflagem da vida como ela realmente é.
Tem também a personagem Alice Passos (Juliane Araújo) da
novela Lado a Lado (2012) escrita por Claudia Lage e João Ximenes Braga. Pelo
menos Alice está inserida em um contexto social e histórico propício a escrever
em diários, pois o folhetim se passa no início do século XX, período
pós-escravista onde os valores da sociedade eram outros. Nesse cenário habitavam
mulheres românticas, sonhadoras e querendo subir ao altar, ou seja, casar-se. E
como elas não podiam demonstrar os sentimentos e nem serem atiradas, restava guardar
as emoções e confissões dentro do diário. Hoje os tempos são outros, a
tecnologia permitiu mudar o nosso comportamento e nosso olhar diante das coisas.
Agora vivemos em comunidades virtuais e ficamos cada vez mais sozinhos dentro
de nossas casas. Tudo é virtual e efêmero, desde emoções a atitudes.
Não estou aqui decretando a morte dos diários sentimentais
como decretaram algum dia a tal da “morte do autor”, é claro que ainda existem
pessoas utilizando-os, porém em menor número, pois o surgimento do blog proporcionou
outras possibilidades. É impressionante ver anônimos virarem escritores, hoje
todo mundo escreve, até Bruna Surfistinha!
A garota de programa ficou famosa ao relatar em seu blog suas
experiências sexuais com seus clientes. Depois dela, muitas garotas e garotos
de programas se lançaram nessa empreitada, divulgando uma “literatura michê”
recheada de narrativas eróticas. Enfim, atualmente
os diários sentimentais são abertos, eu diria mais, são escancarados para quem
quiser, ao alcance dos olhos, bem na tela de um computador. Perdeu-se a áurea
de mistério do objeto, seu encantamento foi desfeito.
Não se imagina mais roubar diários, não se criam símbolos ou
hieróglifos para proteção do conteúdo escrito, não se preserva a intimidade e
pior, não se permite sonhar dentro desse universo, e nem tão pouco escreve-se
coisas inocentes. O desabafar não é mais solitário, é compartilhado e julgado.
O “querido diário” talvez não seja mais querido, seja chatioso diário ou odioso
diário, um lugar que não cabe mais confidências.
Texto
em homenagem a minha amiga poeta Jancleide Goes
Reinaldo Souza 17/04/2013